Perda silenciosa da floresta, com pequenos incêndios e extração ilegal de madeira, pode dobrar a perda de biodiversidade ocorrida com desmatamento
Uma floresta afetada pela exploração ilegal de madeira, pela caça e por pequenos incêndios, mas ainda em pé, pode parecer, à primeira vista, um cenário bem melhor do que uma área totalmente desmatada, atingida pelo corte raso. De fato, ter algumas árvores é melhor do que não ter nenhuma.
Mas uma pesquisa recente revelou que, em termos de proteção da biodiversidade, essa floresta pode não ser tão melhor assim. Segundo o estudo internacional, divulgado há um ano na revista Nature, esses distúrbios podem dobrar a perda de espécies já ocasionada pelo desmatamento.
Com resultado que contrasta com o senso comum, o trabalho, assim como a própria degradação, não é de fácil compreensão. Nesta terça-feira, 20, ele ganha uma nova “tradução” com o lançamento de uma plataforma que, por meio de mapas, gráficos e infográficos inéditos, permite visualizar as causas, a dimensão e o impacto da degradação na Amazônia.
O projeto “Floresta Silenciosa” foi criado por uma equipe de jornalistas ambientais especializados em visualização de dados – a Ambiental Media – com o apoio dos autores do estudo do ano passado e cientistas ligados à Rede Amazônia Sustentável (RAS). O material foi compartilhado em primeira mão com o Estado através do blog Ambiente-se.
Para entender os dois trabalhos, é preciso primeiro compreender o conceito de degradação. Em linhas gerais, é o resultado de vários distúrbios que vão tirando a integridade da floresta, como o corte seletivo de madeira – na maior parte das vezes ilegal –, e o fogo acidental ou provocado com o intuito de limpar o terreno para cultivo.
O problema está na mira do governo e dos sistemas oficiais de monitoramento porque é entendido como o precursor de um mal maior, de um desmatamento total que pode vir a ser consolidado no futuro. Mas os cientistas defendem que essa degradação em si já é o problema. Pelo mapa acima, é possível ter uma noção disso. Enquanto a Amazônia perdeu, por desmatamento, cerca de 20% de sua área, parte da floresta que resta já não é o que era antes por causa da degradação.
E esse problema é de mais difícil detecção. Quando vista de cima, essa floresta tende a parecer normal, já que as copas das árvores restantes escondem as falhas no seu interior, sendo difícil visualizá-las por satélite.
“No desmatamento, também chamado de corte raso, a floresta desaparece por completo para dar lugar ao pasto, à monocultura ou, eventualmente, ao simples abandono. A degradação, por outro lado, disfarça-se melhor. Ela pode tomar as feições de uma área verde que, para olhos menos treinados, em muito se parece com uma floresta intacta. Tal característica colabora para que a degradação seja mais difícil de quantificar e seu combate, menos popular”, descreve o grupo.
“Embora a degradação já venha sendo discutida, ainda não está no escopo das políticas como está o desmatamento. O trabalho estimou o impacto da da degradação e mostrou que ela é tão importante para a perda da biodiversidade quanto é o desmatamento”, afirmou ao Estado a bióloga Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém (PA) e coautora da pesquisa.
“A floresta está lá, mas em qualidade inferior a que estaria se não tivesse sofrido com fogo e com extração de madeira. O valor de conservação dessa floresta fica muito abaixo do esperado. Nossa legislação, o Código Florestal foca se uma determinada área tem ou não tem floresta. Mas só essa distinção não é suficiente. O que é esta floresta que estamos deixando? Qual é a capacidade dela de se recuperar e voltar a ser o que era antes?”, complementa.
Foram esses questionamentos que o grupo de quase 30 pesquisadores levou a campo por dois anos e meio. Trabalhando em uma porção do Pará, nos municípios de Santarém e Paragominas, eles saíram à caça de amostras de espécies de árvores, aves e besouros, considerados bons indicadores de qualidade ambiental.
Há espécies que só vivem quando o lugar é muito bem preservado. Há outras que são mais adaptadas e vivem em qualquer ambiente. Se somente essas são encontradas, é porque o cenário ali já não é dos melhores. Na plataforma, há uma área interativa dedicada às aves que explica essas peculiaridades.
Contando a quantidade de animais encontrados e a diversidade deles, cruzando com dados sobre os impactos ambientais em cada área, como influência de estradas, zonas de extração de madeira e ocorrência de incêndios, foi possível fazer um mapa para o Pará, que depois foi extrapolado para toda a Amazônia.
Para toda a região, a estimativa é que já tenha sido desmatada cerca de 20% da área original. Mas, segundo os autores, liderados por Jos Barlow, da Universidade de Lancaster (Reino Unido) e do Museu Emílio Goeldi, isso não significa que apenas 20% da biodiversidade sumiu. “Porque quando houve o desmatamento, muito provavelmente essas áreas não estavam mais em seu potencial máximo. Já tinham sofrido com a degradação antes. Por isso estimamos o dobro de perda de biodiversidade”, explica Joice.
Alerta para a restauração. Para os pesquisadores, é preciso, porém, cuidado para não entender a mensagem erradamente. “Muita gente pode achar, com os resultados do estudo, que se a floresta não presta mais o mesmo serviço então pode derrubar de vez. É claro que uma floresta degradada é milhões de vezes mais válida que não ter floresta. Mas quanto mais degradadas, menos serviços vão prestar”, comenta Toby Gardner, do Instituto Ambiental de Estocolmo e um dos fundadores da RAS.
“Temos de ver aqui uma janela para segurar esse processo e restaurar as áreas degradadas”, complementa. Ele defende que em situações de baixo orçamento para conservação, que o foco deveriam ser essas florestas que ainda existem, mas estão degradadas.
“As intervenções disponíveis para combater a degradação florestal são de custos muito menores do que tentar regenerar áreas já desmatadas e podem trazer grande benefício”, diz. “A prioridade deveria ser evitar maiores distúrbios. Às vezes é só deixar a área quieta, protegida do fogo, da entrada de animais e da exploração de madeira. Isso tem custo, mas é menor que restaurar e tem resultado”, complementa.
A discussão é particularmente importante quando há discussões em curso no Congresso para a redução de unidades de conservação na Amazônia, o que pode ser um incentivo para o aumento da degradação. Na segunda, o presidente Michel Temer vetou duas medidas provisórias que diminuam várias áreas, mas um novo projeto de lei ainda com algum grau de alteração será apresentado.
“Sabemos que estradas são vetor de degradação ao favorecerem o acesso à mata, intensificando a exploração de madeira. As unidades de conservação funcionam como um tampão, diminuem fragmentação, o efeito de borda, deixam o micro-clima mais favorável. Se há enfraquecimento da legislação, abrimos espaço para esses vetores de degradação. Para mais exploração madeireira, mais fogo”, alerta Joice.
Na plataforma, que teve como coordenador o jornalista Thiago Medaglia, é possível ver, além dos mapas e infográficos, as reportagens que detalham esses prejuízos à natureza e as soluções.
Fonte: www.sustentabilidade.estadao.com.br