Técnicas vão além do reuso, e especialistas apontam necessidade de políticas públicas de incentivo
O Brasil passa pela maior crise hídrica em 91 anos, e nesse cenário, autoridades estão pedindo ou promovendo campanhas para que os setores produtivos e a população reduzam o consumo de água e de luz, já que a crise hídrica também já impacta na geração de energia.
Dentre as alternativas, a chamada economia circular oferece técnicas a empresas que podem ajudar a evitar novas crises e amenizar a atual.
Dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) de 2017 mostram que os setores de irrigação, uso animal e de indústrias possuem os maiores consumos de água.
Em relação ao retorno da água aos corpos hídricos (rios e cursos subterrâneos), o setor de abastecimento urbano é o que devolve a maior quantidade, seguido pelo de irrigação.
Especialistas consultados pela CNN Brasil apontam que os setores empresariais ainda possuem espaço para economizar água e devolver quantidades maiores ao meio ambiente. Para isso, porém, é necessário uma visão mais sistêmica desse consumo, e é aí que entra a economia circular.
Da economia linear à circular
Renata Nishio, gerente técnica do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), explica que o modelo econômico predominante atualmente é linear. “Você consome qualquer item e no fim joga no lixo e vai parar em algum lugar em que nada dele é absorvido”, diz.
Ela afirma que esse modelo acaba levando a um desperdício do esforço de produção daquele produto e dos recursos utilizados nesse processo. Foi a partir da tentativa de reverter esse desperdício que surgiu a economia circular.
“Economia circular é fazer os recursos voltarem de alguma forma”, explica. Nishio diz que a economia circular propõe um fluxo em que os recursos e os produtos ligados às cadeias produtivas de empresas conseguem ser sempre reaproveitados.
Se na economia linear um produto tem um “fim de vida”, na economia circular ele passará por processos como “redução, reuso ou reciclagem”, que o mantém nas cadeias produtivas.
Nesse sentido, Aldo Roberto Ometto, professor da EESC-USP e coordenador do centro de pesquisa em Economia Circular do InovaUSP, vê a economia circular como um novo modelo econômico.
“A primeira grande mudança é que, ao invés de verificar, como na economia linear, processos e como buscar melhorá-los, surge a visão de ter algo mais sistêmico, e que precisa de colaboração e organização ampla para funcionar”, afirma.
A ideia da economia circular, portanto, é ir além de iniciativas de reuso e reciclagem que já são praticadas desde a década de 1980, oferecendo uma visão que integre diferentes empresas, setores e cadeias produtivas para reaproveitar recursos que, hoje, estão sendo desperdiçados.
Para integrar as cadeias de fornecimento, é preciso olhar para quem vende e quem consome seus produtos, encontrando e incentivando formas de reaproveitar e economizar recursos em todas essas áreas.
Mas a economia circular também busca melhorar os processos produtivos, com um esforço para desenvolver novas tecnologias e formas de produção que reduzam ao máximo o consumo de recursos naturais, e que consigam até retirar por completo a necessidade de utilizá-los.
Ometto explica que a economia circular ganhou forças nos últimos anos após um relatório de 2014 do Fórum Econômico Mundial, que colocou a ideia como “a solução para acelerar e escalar as cadeias de suprimento globais”. “É por ela que a economia consegue gerar valores sem necessariamente se limitar aos recursos físicos, que são finitos”, diz.
“Surgem modelos como compartilhamento, recuperação de produtos, insumos renováveis e produtos como serviços”, afirma o professor da USP. Ele considera que a economia circular “muda a visão de negócio da empresa”, mas que ela demanda uma metodologia própria, analisando fluxos e identificando como os recursos são usados e podem ser melhorados.
Ou seja, a economia circular é uma forma de manter e expandir os níveis de produção atuais, mas evitando um consumo e desperdício maior de recursos. Entre esses recursos finitos está a água, que pode ser beneficiada por essa visão sistêmica.
Melhoria de saneamento é essencial para economia de água
Para Ometto, essa visão sistêmica que a economia circular traz, ou seja, ir além da própria empresa, quando aplicada ao recurso hídrico, mostra que a principal forma de reduzir o consumo e o desperdício desse recurso depende de infraestrutura. Ele aponta os altos níveis de locais sem água tratada, o desperdício de água durante seu transporte e a baixa qualidade em alguns locais.
“No Brasil, 46% de todo o esgoto gerado não é tratado, esse é o dado mais importante, porque não é reutilizado e ainda contamina água e rios, é o pior caso de economia circular que podemos dar de exemplo”, destaca Nishio. “Estamos fazendo com que a água se torne lixo, esse é o grande risco para o Brasil”.
A água que acaba sendo desperdiçada poderia ser enviada para estações de tratamento que conseguem deixá-la a níveis até de potabilidade, além de permitir usos em outras etapas da cadeia, como para aquecimento e resfriamento.
Nishio considera que existem chances dessa prática aumentar após a aprovação do Marco do Saneamento, que cria diretrizes nacionais para a regulamentação e aplicação da água de reuso.
“O grande impacto para a indústria ao utilizar a água de reuso é que os seres humanos sempre vão produzir esgoto, e usar essa água tratada dentro dessa planta, em seus processos, faz com que você deixe de utilizar água das bacias e rios da região, sai do risco de escassez hídrica. Mas depende de uma infraestrutura de transporte para isso, e não é barata”, diz.
Para Nishio, as empresas já possuem hoje diversas medidas internas que buscam economizar água, tornar processos mais eficientes e reaproveitar o recurso. Assim, é necessário sempre buscar a melhoria desses processos, mas também ir além.
“Não adianta hoje a empresa fechar o circuito de água e achar que já fez sua parte, porque pode nem haver água para consumir”, afirma Ometto. Assim, ele defende ações que vão além de economias internas. Uma delas seria as próprias empresas investirem na melhora de tratamento de água nas cidades em que atuam, já que a melhora da qualidade de água também torna os processos mais eficientes.
O investimento em saneamento também é importante pois evita que resíduos sejam descartados em fontes de água, contaminando-as e reduzindo o acesso ao recurso. Ele também sugere uma integração entre as empresas, por exemplo com o envio de um insumo excedente de uma empresa para outra que pode reaproveitá-lo de alguma forma.
A Aquapolo já experimenta os benefícios da economia circular. Em operação desde 2012, a empresa, que conta com a Sabesp entre as acionistas, compra uma parte do esgoto que é tratado pela Sabesp e que seria jogado em córregos e continua o processo de tratamento, permitindo que o recurso seja usado em processos industriais.
O Aquapolo atende 9 empresas e 17 plantas industriais, produzindo 1000 litros de água por segundo, uma quantidade suficiente para atender até 550 mil pessoas. “Nesse processo, as empresas estão deixando de captar ou concorrer com a população por água potável, é sustentável sob a perspectiva social e ambiental”, explica Marcio da Silva José, diretor-presidente da empresa.
O próprio projeto surgiu de uma demanda das empresas do polo petroquímico de Capuava, no ABC paulista. “Elas entendiam a escassez hídrica da região e utilizavam água do rio Tamanduatei, com altos custos para captar, tratar e usar, além de questões de manutenção e acidentes. Tinham planos de crescimento do polo e estavam preocupados com os impactos ambientais das operações deles, com processos considerados poluentes”, afirma José.
Com isso, o Aquapolo atendeu a duas demandas: a garantia de fornecimento de água, mesmo durante uma crise hídrica, e a participação das empresas em ações favoráveis ao meio ambiente, no caso uma economia de água. O recurso é usado pelas empresas principalmente para resfriamento e geração de vapor em processos industriais.
José considera que o Aquapolo teve uma “equação muito única” que facilitou o estabelecimento do projeto, hoje um dos maiores da América Latina e do mundo, e único no Brasil. Ele cita a construção de uma planta de tratamento pequena e a proximidade com a Sabesp, o que facilita a captação de água de reuso. A maior dificuldade, segundo ele, foi a construção da infraestrutura de transporte da água para essas empresas, um processo que demorou dois anos.
“Não sei se é fácil ou difícil [estabelecer projetos semelhantes], cada situação é única, mas é relativamente simples se tiver o cenário que tivemos: alguns clientes âncoras, que consomem muita água e estão dispostos a fazer contratos de médio e longo prazo, e uma facilidade ou disponibilidade de esgoto tratado em uma proximidade razoável, reduzindo um custo de transporte, que é grande”, diz.
Ele considera que as ações de reaproveitamento da água, com investimentos no tratamentos de resíduos, deve aumentar. “As mudanças climáticas vão impactar, então em algum momento essa água vai acabar sendo mais usada, potabilizada e reaproveitada. É o futuro reciclamos muitos materiais, e o elemento mais fundamental, que é a água, a gente tem tecnologia, a possibilidade, mas faz pouco”.
“A água pode virar um recurso que falta, e não se muda isso de forma isolada”, afirma Ometto. “Não é uma solução rápida, uma obra que fez e pronto, porque é uma mudança mais ampla, mas que vai gerar resultados para o longo prazo, não é uma solução paliativa, de curto prazo”, destaca.
Os especialistas afirmam que todo esse processo fica mais difícil, e lento, sem uma participação mais ativa do Estado, com políticas públicas de incentivo e melhoria de infraestrutura.
“O Estado teria um papel importantíssimo, porque são questões ligadas a políticas públicas, incentivos para uma solução mais integrada, incentivos para renovações, permitir escala”, diz o professor.
Nishio afirma que a própria crise hídrica atual aumentou o interesse do governo em novas formas de economizar água. “Nessa crise hídrica a gente não consegue esse tipo de ação, mas consegue um tipo de comoção para que não exista a próxima crise hídrica. Obras de infraestrutura demoram, contratos demoram, mas a crise hídrica traz a realidade para o dia a dia das empresas e para o país que quer produzir, ter mais renda”.
Assim, Nishio considera que “ainda há espaço para melhoria [nos processo das empresas] e isso pode ser feito, sempre pensar em inovações e melhorias de processos. O país precisa pensar dessa forma”. “Algumas empresas tentam fazer, entender, mas o grande perigo é fazer com que isso seja transformado em ações simples e isoladas”, diz Ometto.
O papel do agronegócio
Somando os setores de irrigação e de uso animal, o consumo de água chegou a 79% do total em 2017, segundo dados da ANA.
Para Carlos Eduardo Vian, professor da Esalq-USP, esse consumo é natural considerando o tamanho dos setores no Brasil. O uso de irrigação, inclusive, ainda poderia ser maior, segundo ele.
“A gente está caminhando [na economia de água], com alguns usos que eu acho que são inovadores. De uns 15 anos para cá, após a crise hídrica dos anos 2000, começamos a ver que era um mito de que a água era abundante, o brasileiro não se preocupava com isso. A gente vem tendo essa preocupação”, afirma.
O professor considera que, desde então, os investimentos em técnicas que reduzam o consumo e desperdício de água foram aumentando. “Tem crescido muito a ideia do uso mais racional, com métodos de irrigação eficientes no consumo de água, como irrigação por gotejamento”.
“Existem evidências de que é possível aumentar a eficiência, algo ligado à captação e à distribuição da água. Isso também ocorre em cidades, com a necessidade de evitar vazamentos”, diz.
Para o professor, o novo Marco do Saneamento estabeleceu mais medidas que ajudam no controle sobre o consumo de água: “dá um controle sobre como os agricultores usam água, precisa de autorizações, um limite de utilização. Sempre há espaços para melhorias”.
A expectativa de Vian é que essas medidas de preservação continuem devido ao interesse cada vez maior dos consumidores e também de investidores, que consideram práticas ambientais ao tomar decisões de alocação de capital.
Ele afirma, porém, que essas mudanças podem não ser imediatas. “Tem um tempo entre reconhecer que existem as melhorias, implementar os projetos, fazer a tecnologia, implementar os investimentos”.
O agronegócio também acaba afetando a oferta de água a partir do desmatamento para gerar novas áreas produtivas. “Se está desmatando, a água que a árvore libera deixa de existir, corta uma quantidade dos rios voadores. O mundo já está mais quente, as queimadas não intencionais já estão mais suscetíveis em todos os biomas, então já perde bioma por conta disso. Desmatamento quebra o ciclo da água”, diz Renata Nishio.
Evitar o desmatamento também acaba sendo uma ação de economia circular, já que beneficia diversos setores da economia e preserva recursos naturais. Vian lembra que também existem outras atividades que contribuem para o desmatamento, como a mineração e extração de madeira, e que, apesar de muitos agricultores e pecuaristas ainda desmatarem, ele tem visto uma “mudança de visão”.
“A gente passou uma fase em que tinha o objetivo de produzir, e não havia a preocupação, nem de fiscalização, com preservação adequada, então desmatamos várias regiões, em especial a Mata Atlântica, o Cerrado”, afirma.
Ele considera que a questão “não é algo que se resolve do dia para a noite”, mas que a tendência é que a preservação aumente cada vez e, com isso, os efeitos sobre os níveis de água também diminua.
“A economia circular no Brasil tem grande potencial, oportunidade enorme, porque tem diversidade, criatividade e até aspectos culturais, da população consumir o máximo possível de um produto. O que precisa para impulsionar isso são alavancas”, afirma Ometto.
*Sob supervisão de Ana Carolina Nunes e Thâmara Kaoru
Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/business/como-a-economia-circular-pode-ajudar-empresas-a-reduzir-consumo-de-agua/