São 14 caminhões transportando 90 caçambas, sem parar.
“É do parque”, anuncia o motorista do caminhão ao atravessar a portaria do imenso depósito, numa rua movimentada de Honório Gurgel. Montanhas de papelão estão prensadas no pátio em blocos de três metros de altura. É o terceiro veículo do dia a entrar na cooperativa de reciclagem Ecco Ponto — até o fim do expediente, a cena se repetirá outras dez vezes. Eles trazem o lixo reciclável das arenas olímpicas espalhadas pela cidade. São 14 caminhões transportando 90 caçambas, sem parar.
A Olimpíada é uma fábrica de lixo. Em todas as arenas de competição, 260 toneladas de resíduos serão produzidas diariamente. Nos 27 dias de jogos, serão sete mil toneladas. O Comitê Rio 2016 pretende reciclar metade dessa carga. Para a meta ser cumprida, a reciclagem do maior evento do planeta está nas mãos de 240 catadores de 33 cooperativas da cidade. Cooperativas que, até pouco tempo, não se juntavam nem para tomar um café, e que só trabalhavam em grandes eventos quando o serviço era terceirizado. Desta vez, os próprios catadores ganharam uma licitação, concorrendo com grandes empresas do setor. Venceu não apenas o menor preço, mas o projeto de maior impacto social.
Desde a semana passada, o lixo reciclável produzido no Parque Olímpico vai para o gigantesco galpão da Ecco Ponto, a maior cooperativa do Rio — 40 pessoas trabalham no local diariamente. Para lá, já foram 21 toneladas de papelão. Com exceção dos resíduos da arena de vôlei de Copacabana, sob responsabilidade da Comlurb, tudo o que for produzido nos espaços olímpicos será levado para Honório Gurgel.
UNIÃO INÉDITA
Os catadores comemoram. Alexandre Freitas, o Gordinho, não teve muita sorte nos estudos, mas virou doutor em reciclagem no Lixão de Gramacho, em Caxias, onde começou o ofício em 1998. Mora no mesmo barraco daquela época, também em Gramacho, e reclama da falta de políticas públicas para os catadores que viviam do aterro, fechado em 2012. Ele, que chegou a ganhar meros R$ 30 de diária, classifica como “carta de alforria” a união inédita dos catadores de 33 cooperativas:
– Sempre trabalhamos para os outros, mas isso está acabando. Hoje não precisamos de nenhuma ONG para nos explorar. Procuramos o Ministério Público do Trabalho (MPT), que está do nosso lado. Agora, nós comandamos.
O MPT se habituou a identificar catadores em situação precária durante grandes eventos. No Rock in Rio, ano passado, uma cooperativa recorria a trabalhadores contratados de forma irregular, agindo como atravessadora, em vez de usar seus cooperados. Eles recebiam diárias irrisórias e não utilizavam equipamentos de proteção, como luvas e botas. Na Olimpíada, o cenário é outro: todo o valor arrecado com a venda do lixo será dividido igualmente pelos profissionais. As diárias são de R$ 80, e eles têm direito a alimentação e transporte. Com o que vão ganhar, já estão planejando o Natal.
Claudete Costa tem 36 anos e diz que sua vida mudou em janeiro. Antes, ela estava à frente da cooperativa Reciclando para Viver. Poucos teriam a dureza e, ao mesmo tempo, a sensibilidade necessárias para coordenar 20 catadores que vivem nas ruas do Centro do Rio. Mas Claudete as conhece bem: morou nelas dos 8 aos 15 anos, depois que a mãe fugiu, com os quatro filhos, do pai, que bebia muito e batia nela. Conviveu com as vítimas da Chacina da Candelária — oito meninos assassinados por PMs perto da igreja. Ela e as amigas iam à igreja para paquerar. Passavam perfume na Mesbla, que funcionava ali perto, antes de chegar à praça. Quase foram na noite da chacina: desistiram para catar latinhas perto da Santa Casa.
VIDA AINDA DIFÍCIL
O que Claudete chorar é pensar em Tiago, seu filho do meio, que morreu atropelado por um automóvel aos 7 anos. Ela também se lembra do ex-marido, que a ensinou a escrever e a ver as horas em relógio de ponteiro.
— Eu era pedinte, virei camelô, catadora, e agora recicladora — afirma a presidente regional da Rede Movimento Nacional dos Catadores.
São mais de um milhão de catadores no Brasil. A união das 33 cooperativas é um passo à frente na organização do movimento, que poderá dar novos saltos, como pleitear a reciclagem do carnaval na Sapucaí, um sonho que parecia impossível. Mas a vida dos catadores ainda é difícil. O trabalho é pesado e paga pouco. Quem é cooperativado consegue um preço melhor e ganha um salário fixo, na faixa de mil reais, mais benefícios. Muitos dos dois mil trabalhadores sem ligação com as cooperativas, espalhados pelo Centro e pela Zona Sul, moram na rua. Para esse grupo, 65 latinhas valem R$ 2, às vezes menos.
— Tem dias que são três, quatro horas andando por essa cidade para conseguir um quilo de latinhas. Mas é melhor do que roubar — diz Eduardo, sem dar o sobrenome, durante um show na Praça Mauá, quinta-feira à noite.
Até para as cooperativas, vencer atravessadores é um desafio.
— Não é fácil chegar na ponta da indústria — diz Claudete.
Na sexta-feira, ela carregou a tocha olímpica por 200 metros. Uma experiência que nunca imaginou viver.
POR CAIO BARRETTO BRISO
Fonte: www.oglobo.globo.com