Na semana em que a tragédia ocorrida em Mariana (MG) – provocada pelo rompimento da barragem de Fundão da Mineradora Samarco – completa três meses, entidades acadêmicas, associações profissionais e movimentos sociais de diversas áreas de atuação vêm a público chamar a atenção da sociedade brasileira para a importância de se acompanhar, com muita cautela e cuidado, todo e qualquer projeto de reconstrução para a “nova Bento Rodrigues”.
Em um manifesto assinado por 21 instituições, entre elas, a ABES, os signatários do documento ressaltam que o processo de construção dessa nova localidade deve considerar, no mínimo, a equivalência das condições de vida existentes anteriormente à tragédia e que todas as decisões devem levar em consideração o desejo e a opinião da população afetada.
No documento, os signatários defendem ainda que a definição da localização do novo assentamento, bem como a elaboração dos projetos urbanísticos e arquitetônicos, deve ser fruto de uma construção coletiva, em que a participação dos moradores seja totalmente assegurada.
O manifesto também destaca que é preciso dedicar atenção especial às populações ribeirinhas e demais moradores de áreas atingidas ao longo dos cursos de água impactados. Além disso, reforça que as obras devem ser custeadas pelas empresas responsáveis pela tragédia, mas que a gestão de todas as medidas deve ser feita pelo Estado. Segundo o documento, transparência e controle social são valores imprescindíveis nesse processo.
Abaixo, veja o manifesto na íntegra, que também está disponível no Portal Fiocruz http://bit.ly/1KSCpGE.
Respeito às vítimas da tragédia provocada pela Samarco (Vale/BHP Billiton) é o mínimo que se pode exigir dos responsáveis!
O rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, resultou na maior tragédia ambiental do país, provocada por inaceitável falha no controle tecnológico da empresa. Os danos ocasionados por essa catástrofe são incomensuráveis, afetando mais de um milhão de pessoas na bacia do Rio Doce. O ecossistema e a biodiversidade foram profundamente impactados, ao longo dos cerca de 700 km de extensão da hidrografia regional, além do delta do Rio Doce e do oceano. Diferentes prejuízos econômicos vêm fragilizando a economia regional, emprego e renda. São danos de grande intensidade, de longa duração, de difícil reversão, e um indiscutível crime ambiental sem precedentes no país.
No cerne dos enormes prejuízos socioambientais, são muitas as vítimas: trabalhadores da Samarco e de terceirizadas, agricultores familiares e camponeses, pescadores artesanais, faiscadores, comunidades tradicionais, o povo indígena Krenak, trabalhadores e artesãos envolvidos com o turismo regional, além dos consumidores da água comprometida ao longo da bacia. Cabe destacar, particularmente, as centenas de famílias que se viram obrigadas a abandonar suas moradias em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, Mariana-MG, e em Barra Longa-MG. Perderam seus laços culturais, sua noção de vizinhança, o pertencimento a uma história e a um ambiente que moldou seu modo de viver. Tiveram excluídos seus bens, trabalho, registros, documentos e as recordações acumuladas no curso de suas vidas. Passaram a viver em condições provisórias e precárias, a elas impostas, afastadas de seu ambiente sociocultural e das condições necessárias para a sua reprodução social. Subtraídas em sua autonomia, vivem há mais de dois meses o sofrimento social imputado pela dependência em relação a empresas e às instituições. Processos institucionais de negociação apresentam-se pouco eficazes em relação ao esclarecimento dos direitos e à reparação justa dos danos.
“A gente fica em quarto apertado e sem quintal. Ninguém aguenta mais. Estamos estressados e cansados. Queremos voltar para casa”. Verbalizações como esta, expressa por moradores de habitações provisórias em reuniões entre empresas, Ministério Público e vítimas, sintetizam o drama vivido. É particularmente preocupante a situação das famílias atingidas em Volta da Capela, Barra Longa, em que, embora as famílias venham reivindicando seu reassentamento, a Samarco dispõe-se apenas a promover reformas nas moradias afetadas. Localizadas próximas ao rio, tais habitações podem estar expostas a novos riscos decorrentes da completa modificação da morfologia do rio após o desastre.
A postergação de encaminhamentos concretos e os anúncios de atividades paliativas têm acentuado o sofrimento das vítimas, conforme mostra o trecho a seguir: “Eu estou perdendo tempo aqui com vocês falando isso… a gente continua com a lama lá… Resolve o terreno. Se tiver que pagar indenização, paga.”
Neste momento, em que se anuncia a contratação pela Samarco de um projeto para a “nova Bento Rodrigues”, as entidades signatárias deste documento vêm a público chamar a atenção da sociedade brasileira e alertar tomadores de decisão de que esse processo requererá um tratamento muito cuidadoso, proporcional à delicadeza da situação. Julgamos que erros recorrentes, quando megaempreendimentos promovem o deslocamento de comunidades inteiras de forma equivocada, sem a devida atenção aos direitos, expectativas e necessidades dos atingidos, não podem definitivamente se repetir.
O processo de construção da nova localidade e de novas moradias deve, à frente de qualquer critério, levar em consideração, no mínimo, a equivalência das condições de vida em contextos socioambientais existentes anteriormente à tragédia. Atenção especial deve ser dada aos desejos e à percepção de seus futuros moradores. Desde a escolha da nova área, passando pelos projetos urbanístico e arquitetônico, até a própria construção, devem ser etapas realizadas com acompanhamento e consulta aos moradores. Faz-se essencial ainda que, integrada à reconstrução pós-desastre, seja promovida nova dinâmica de desenvolvimento econômico e social sustentável na região afetada.
Os signatários deste manifesto, ao tempo em que se solidarizam com a população atingida, defendem:
- A localização do novo assentamento trará impactos fundamentais nos laços sociais, na mobilidade, nas atividades produtivas e no acesso à educação, à saúde, ao lazer, à cultura e demais necessidades socioeconômicas e culturais dos antigos moradores de Bento Rodrigues. Portanto, não deve ser definida de forma tecnicista e vertical, considerando apenas critérios de ordem física e econômica.
- Os projetos urbanísticos e arquitetônicos não devem ser fruto de uma concepção de gabinete, que reflita apenas a visão da equipe técnica. Os equipamentos urbanos, a infraestrutura e a concepção arquitetônica devem garantir a preservação da qualidade de vida dos moradores. A qualidade construtiva, por sua vez, deve assegurar a perenidade da construção e da infraestrutura. Tendo como referência acordos internacionais relacionados à redução de risco de desastres, dos quais o Brasil é signatário, a reconstrução da vida da população de Bento Rodrigues deve assegurar condições melhores e mais seguras que as originais e se integrar com nova dinâmica de desenvolvimento econômico e social sustentável em toda a região afetada.
- O derramamento dos rejeitos comprometeu o abastecimento de água de localidades situadas a centenas de quilômetros de distância da barragem e provocou enorme perda de biodiversidade no Rio Doce, afetando a economia e modos de vida de populações ribeirinhas e do litoral. A lama de rejeitos acumulada no leito e margens dos cursos de água possui grande potencial tóxico e pode ser mobilizada por eventos pluviométricos, dragagens e os próprios trabalhos de recuperação das áreas soterradas. Nos próximos anos, novas plumas de contaminação podem alcançar estas localidades, inviabilizando a utilização do Rio Doce para consumo humano. Logo, atenção especial deve ser dedicada às populações atingidas ao longo dos cursos de água impactados.
- Para todas essas situações, conclamamos para que espaços democráticos sejam criados, de modo que a população lesada tenha papel protagonista na tomada de decisões e no acompanhamento das atividades a serem realizadas. Particularmente, a “nova Bento Rodrigues” e demais reconstruções terão que ser produto da visão de seus moradores, que já foram severamente prejudicados pela maior tragédia socioambiental do Brasil. Até a completa reinstalação dos moradores, todas as pessoas precisam ter seus direitos fundamentais respeitados.
- A gestão de todas as medidas pós-desastre necessárias requererá investimentos, a serem necessariamente custeados pelas empresas responsáveis pela tragédia, e eficaz e eficiente arranjo institucional. Será imprescindível que o protagonismo deste processo seja do Estado, envolvendo os governos federal e dos estados e municípios atingidos, e não de quaisquer agentes privados. Transparência e controle social são valores inegociáveis nesta gestão.
1º de fevereiro de 2016
Assinam:
Associação Brasileira de Agroecologia (ABA – Agroecologia)
Associação Brasileira de Antropologia (ABA – Antropologia)
Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABMC)
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES)
Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP)
Associação Brasileira de Limnologia – (ABLimno)
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)
Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR)
Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE)
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA)
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB)
Movimento Pela Soberania Popular Na Mineração (MAM)
Projeto Manuelzão UFMG
Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares
Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECOECO)
Fonte: Fonte: CPqRR/Fiocruz MG